domingo, setembro 10, 2006

454 - avó...






... sabe acordei a pensar em si, estava noite, era de noite.
Lembrei-me dos terços que rezávamos (quase sempre fingia que já estava a dormir) gostava de a ouvir, a ladainha toda... «gemendo e chorando neste vale de lágrimas»... se calhar é por isso que as pessoas hoje se dizem católicas mas não vão à igreja, não querem gemer, nem chorar...
Sabe avó, quando penso em sofrimento penso em si, eternamente, vestida de negro, um marido e dois filhos que partiram cedo, cedo demais (é sempre cedo demais).
Quando penso em trabalho, também, penso em si, o trabalho começava de manhã, bem cedo, com o pentear, o enrolar os longos cabelos num carrapito, fixar tudo com ganchos... continuava, semear ou plantar, mondar, regar, cavar, sachar, «encanar» (refiro-me às canas por onde trepa o feijão), o trabalho do campo, não acabava, pois não, avó?
Nada acaba, nem o trabalho, nem o sofrimento, nem o sol, nem a lua.
Aquele sol, aquela lua foram fotografados hoje, avó.
Já que estava acordado...
A lua e o sol andam, como nós, têm estradas caminhos, pontes, cores, riscos brancos, céu azul
Sabe avó, há pessoas que pensam que sabem tudo, aquilo que sei, aprendi consigo, com pessoas sábias, que sabem ver o sol e a lua, que sentem o cheiro da terra... que sabem que nada acaba, mas, tudo é efémero.
Actualizado em 2008.09.10
Foi há dois anos.
Fotografias, reveladas.
A vida e a morte não são tão fáceis de captar.
Avó.
A minha avó.
Avó de quatro netos.
Mãe de dois filhos mortos.
Filha de um pai morto e de duas mães mortas.
Irmã de uma irmã e dum irmão mortos.
Às vezes penso em mesquinhices.
Depois penso na minha avó.
Viúva com trinta e poucos anos, eternamente, vestida de negro.
Lembro-a com carinho (estou a sorrir).
Os longos cabelos negros que penteava, a travessa e os ganchos... o trabalho, o sorriso.
Três ovinhos que desovou (avó e avô derivam de ovo) dois meninos e uma menina.
Os meninos morreram novos (um com 16, outro com 30 e poucos) a menina felizmente não, caso contrário não estaria aqui a empurrar teclas melancólicas.
Uma mãe que perdeu, nova, outra mãe que ganhou dum segundo casamento do pai (meu bisavô)... todos partiram.
Dois irmãos que partiram também.
Às vezes, muitas vezes escrevo palermices.
Depois penso na minha avó.
Nas tromboses.
(as pessoas importantes têm avc's)
A minha avó teve tromboses, muitas.
Não era importante. Era/é importante para mim.
Era/é importante para muitas pessoas que a viram sorrir.
(continuo a vê-la sorrir, aquele título... se fosse viva... era a brincar, as pessoas que amamos nunca morrem em nós).
Farias 96 anos, avó... quando estamos vivos a idade não importa.

2 Comments:

Blogger crt said...

A fé, o sofrimento, o trabalho, a sabedoria...tudo tão passado e, simultaneamente, tão presente!!
São memórias afectuosas muito bonitas de recordar. Gostei de ler.

segunda-feira, setembro 11, 2006 2:11:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

ainda bem que estavas lá e fotografaste.
do sofrimento não gostei. quando nasce (nunca o vi nascer)é outro dia, outro efémero...talvez esses e essas que tudo julgam saber, se vissem as tuas fotos, compreendessem como tudo é efémero...ou não, estou desacreditando, cada vez mais,em que possamos mudar pessoas assim.

sábado, maio 19, 2007 3:03:00 da tarde  

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