quinta-feira, novembro 11, 2010

417/2010 - tinta que permanece, sessenta e sete anos passados


Quinta-feira, 11 de Novembro de 1943
Ode à minha caneta de tinta permanente
«In memoriam»
A minha caneta foi para mim, sempre, uma coisa preciosa. Apreciava-a imenso por ter um bico grosso e redondo, porque só escrevo com bicos assim. Ela viveu uma vida de caneta bem longa e interessante, que vou aqui descrever.
Quando fiz nove anos, chegou (embrulhada em algodão em rama) como «amostra sem valor». Foi a avòzinha que, nessa altura vivia em Aachen, que me enviou uma prenda tão generosa. Estava eu precisamente deitada na cama, com gripe, e lá fora uivava o vento de Fevereiro. A gloriosa caneta vinha num estojo de couro vermelho. Mostrei-a, logo que pude, a todas as amigas e conhecidos.
Eu, Anne Frank, possuidora orgulhosa de uma caneta de tinta permanente!
Quando fiz dez anos, recebi licença de a levar para a escola , e a professora deixou-me escrever com ela.
No ano seguinte o meu tesouro teve de ficar em casa porque a directora de ciclo, no liceu, só permitia canetas vulgares.
Quando aos doze anos entrei no Liceu judaico, deram-me um estojo novo com duas divisões. Uma era para a lapiseira. Esse estojo tinha um fecho «èclair» e era muito vistoso.
Quando fiz treze, a caneta veio comigo para o anexo e foi a minha companheira fiel quando te escrevia a ti ou quando trabalhava. Agora que tenho catorze, chegou ao fim da existência. Na sexta-feira saí do meu quarto para escrever junto dos outros na mesa da sala. Mas afastaram-se sem piedade, pois a Margot e o pai estavam a estudar latim. A caneta ficou em cima da mesa. A Anne teve de contentar-se com um cantinho onde a fizeram «dar lustro» aos feijões, quer dizer, limpar feijão vermelho que tinha bolor.
Às seis menos um quarto varri o chão e deitei o lixo com os restos dos feijões no fogão. Ergueu-se uma chama colossal e eu fiquei satisfeita com isso, porque o fogo tinha estado quase apagado. «Os latinos» acabaram de estudar e eu recebi licença para voltar à mesa e continuar o meu trabalho. Mas a caneta não estava lá. Procurei-a por todos os lados, a Margot ajudou-me, depois também ajudou a mãe, o pai e o Dussel, mas a minha amiga fiel tinha desaparecido sem deixar vestígios.
- Se calhar, deitaste-a ao fogão com os feijões - disse a Margot.
- Não posso acreditar - disse eu.
Mas quando a hora do jantar chegou sem a caneta ter regressado, já não tínhamos dúvidas: ardeu! E o celulóide que arde tão bem! A triste suposição confirmou-se, quando na manhã seguinte o pai encontrou o «clip» na cinza. Do bico de ouro não restava nada.
- Provàvelmente derreteu com o lixo - disse o pai.
Só me resta uma consolação: a minha caneta foi cremada, precisamente como eu queria que um dia me fizessem.

6 Comments:

Blogger Unknown said...

"O melhor de tudo é o que penso e sinto, pelo menos posso escrever; senão, me asfixiaria completamente."

Anne Frank

Abraço.

sábado, novembro 13, 2010 8:14:00 da tarde  
Blogger pedro oliveira said...

«(...) apesar de tudo, dá-se no pequeno mundo de sofrimentos (...) o eterno milagre da vida: o despertar do amor entre Anne e Peter (...) [palavras de Anne Frank] "quando o Peter (...) brinca com uma madeixa do meu cabelo, quando lá fora se ouve o chilrear dos pássaros (...) quando o Sol nos chama e o ar é todo ele azul (...) então os meus desejos são infinitos"»
in prefácio de Ilse Losa ao livro citado no «post»

O melhor de tudo é o que pensamos e o que sentimos, sem dúvida, mesmo quando nos chamamos Anne e vivemos para sampre, através dum diário que escrevemos entre os 13 e os 15 anos.
O azar de Anne foi ter nascida judia, como o azar de outros foi terem nascidos ciganos... perseguidos pelos polícias do «politicamente puro e correcto» que, infelizmente, continuam por aí; tentando moldar comportamentos e vidas... provocando morte.

Um abraço camarada e que passe (passemos) no exame de Coimbra

sábado, novembro 13, 2010 8:42:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O amigo Pedro é teimoso que nem uma mula (desculpe-me a brutidade, é só em sentido figurado como decerto compreenderá), então não é que mesmo depois de tantas explicações, demonstrações, factos concretos e... eu sei lá, tantas palavras consumidas numa vã tentativa de contextualizar algumas situações onde são actores princípais elementos de uma minoria étnica, o Sr. teima em não encarar o óbvio e inverter os factos? Acho que devia ser mais sensato e não teimar em desculpabilizar quem realmente prevarica, quem não deseja efectivamente integrar-se (por conveniência óbvia), tentando imputar culpas a um dos elos mais fracos do sistema (uma das vitimas). Não queira fazer comparações gratuitas com situações totalmente antagónicas e díspares, não gaste as palavras racismo e xenofobia no caso português em questão (ditas de forma subtil), no caso dos judeus houve perseguição e genocidio, houve uma tentativa de extermínio de uma casta de seres humanos. No problema que se refere, quem não se integra, quem agride, viola, rouba e tem privilégios que o comum cidadão não tem, é essa minoria que o Sr. defende como vitima do sistema. Não procure fantasmas onde não existem, se uma qualquer pessoa decide viver segundo determinados padrões está no seu direito, todavia tem que respeitar os outros que certamente também têm um padrão de vida. No universo terreno existe lugar para todas as religiões, culturas e credos, desde que coabitem segundo as regras de funcionamento do sistema respeitando o seu próximo. Portanto, o Pedro tem que mudar o seu discurso, quem prevarique tem que se sujeitar à pena estipulada e se radicaliza o conceito, então não poderá dizer ´´Coitados dos Ciganos``, mas ´´Felizardos dos Ciganos`` por terem nascido ou vivido em Portugal nesta época da graça do Senhor.
O Politico Residente

sábado, novembro 13, 2010 10:48:00 da tarde  
Blogger r said...

Tantas palavras para dizer que há lugar para todos, segundo as regras de funcionamento do sistema respeitando o próximo. E qual é o fundamento último das regras do sistema? Quem é que define as regras? A quem é que servem essas regras? E como é que o sujeito A deve respeitar o sujeito B que, por sua vez, não o respeita a ele?

domingo, novembro 14, 2010 8:49:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Porque é que a mãe de Anne Frank morreu na enfernaria de Auschwitz/Birkenau?

segunda-feira, novembro 15, 2010 11:03:00 da tarde  
Blogger r said...

«Porque é que a mãe de Anne Frank morreu na enfernaria de Auschwitz/Birkenau?»

quem sabe não estaria em férias, de barriga cheia, papo para o ar ou acabadinha de sair do solário, sei lá. e, antes mesmo de ir ao cabeleireiro, pim, pam, pum... morreu! ele há cada pergunta...

de quem será a responsabilidade destas «preguntas» inocentes? dos donos das «preguntas» ou do trabalho dos historiadores?


E o nome "Pedro Gerhard", não lhe diz nada?

sexta-feira, novembro 26, 2010 1:47:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home

não é o fim, nem o princípio do fim, é o fim do princípio