domingo, maio 13, 2007

743 - as catástrofes e as leis da emoção [1/2]

Desde que não conversamos, meus amigos, este nosso Velho Mundo e os outros mais velhos que se estendem para Oriente têm sido visitados por males inumeráveis, uns trazidos pelas violências da Natureza, outros pela violência dos homens, porque o consciente e o inconsciente (se é que este realmente existe) rivalizaram, como sempre, na produção da dor.
No Japão foi um desses pavorosos «macaréus», que tanto assustavam os nossos navegadores do século XVI, invadindo em desmedido vagalhão léguas de costa e lambendo aldeias, cidades, centenas de milhares de criaturas, como se fossem apenas conchas e areia leve. Na China a costumada trasbordação de rios, afogando nessa noite quinhentos mil chineses, um milhão de chineses, todo um imenso e escuro formigueiro chinês, com a simplicidade com que entre nós um riacho, depois da chuvas, alaga um feijoal em uma horta ribeirinha. Na Índia a peste junta com a fome, à velha maneira oriental, com esse horrendo feitio das expiações bíblicas em que os esfaimados findam por comer os cadáveres, e os pestíferos, aos centos, agonizam à beira dos caminhos, em breve todos brancos de ossadas. Na Arménia uma prodigiosa matança de trezentos mil cristãos, metodicamente dirigida pelas autoridades muçulmanas, com muita ordem, muito vagar, horas regulamentares para assassinar e para descansar e uma escrupulosa escrituração. Na Turquia e na Grécia uma guerra, que não ressuscitou a luta clássica do orientalismo e do helenismo (porque já não há orientais e ainda menos helenos), mas renovou uma briga entre a cruz e o crescente, briga toda concebida no espírito do século XIX, racionalista e positiva, em que os príncipes cristãos (até o papa) se colocaram num utilitário entusiasmo do lado do crescente, de sorte que a cruz teve de fugir com um dos braços partidos por esses caminhos tessálicos por onde outrora o Grego costumava alegremente acossar o Persa numeroso. Na ilha de Creta, tão querida a Júpiter, horrores inenarráveis, sob a vigilância pensativa e paternal de seis esquadras da Europa. Em Espanha bombas e suplícios. E enfim neste Paris o dia doloroso em que a ciência, sob a forma de um cinematográfico, queimou por seu turno, num vasto auto-de-fé, a religião, representada por piedosas senhoras que celebravam uma festa de devoção e caridade católica...
Mas eu não sei, meus amigos, se estas desgraças realmente vos interessam, vos comovem – porque a distância actua sobre a emoção exactamente como actua sobre o som. A mesma dura lei física rege desgraçadamente a acústica e a sensibilidade. É sempre em ambas o idêntico e tão racional princípio das ondulações, que vão decrescendo à maneira que se afastam do seu centro, até que docemente se imobilizam e morrem: se elas traziam um som que vinha vibrando – o som cala quando elas param: se traziam um terror que vinha tremendo – o terror finda quando elas findam.
Bruscas, grossas, frementes, rápidas em torno ao choque que as produziu, essas ondulações não são mais, nos horizontes remotos, do que um vago, quase liso arfar, que mal se diferença da inércia. Senão vede! Em Pequim, subitamente, uma tarde, ribomba um pavoroso trovão – e ao mesmo tempo pega fogo na vistosa cabaia de um mandarim muito ilustre, que morre queimado. Por todo Pequim a impressão é tremenda. Até o imperador, filho do Sol, nos seus grandes jardins, estremeceu, aterrado com aquele imprevisto troar de um céu puro: e nas vielas mais sórdidas os coolies mais piolhentos interromperam um momento o seu negro trabalho para lamentar com exclamações o mandarim muito ilustre. Mas aí está! A vinte ou trinta léguas de Pequim o terrifico trovão foi apenas um rumor que se confundiu com o rolar das carroças nas lajes – e, quando se contou nas lojas loquazes dos barbeiros o desastre do mandarim em chamas, só algum nédio funcionário, com sabão na bochecha, murmurou oficialmente algum «ah!» desinteressado e mole...
É que o som do trovão e a emoção do desastre vieram trazidos por ondulações, que, a trinta léguas de Pequim, seu centro vivo, já se alisavam, imobilizavam, morriam.
E quando aqui na Europa, de manhã, sabemos pelo telégrafo bisbilhoteiro do mandarim e do trovão, nem o nosso ouvido sente o mais ténue som, nem o nosso coração a mais ténue piedade.
Não ondularam até nós as ondulações acústicas e emotivas. E é com absoluta placidez que murmuramos: «Houve em Pequim um grande trovão; e – tem graça! – ardeu um mandarim!»
Mas então essa confraternidade humana – pela sublime força da qual nada do que é humano deve ser alheio ao homem? Não existe? Oh, certamente – mas para todo o homem, mesmo o mais culto, a humanidade consiste essencialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro. Todos os outros restantes, à maneira que se afastam desse centro privilegiado, se vão gradualmente desarmonizando em relação ao seu sentimento, de sorte que os mais remotos já quase os não distinguem da Natureza inanimada. Quando qualquer de nós, no seu quieto e salubre bairro, ouve contar que uma furiosa peste matou trinta mil patagónios, fica exactamente penetrado daquela quantidade de compaixão que o invadiria ao saber que um furacão derrubara trinta mil árvores de um bosque. E de um bosque muito longínquo, de uma região muito desconhecida! Porque se as árvores destruídas fossem as do nosso doce Bosque de Bolonha, que nós amamos, tão ornadas e verdes em Maio, tão puramente vestidas de branca neve quando o Inverno se faz elegante e fino – a nossa mágoa teria uma intensidade infinitamente mais viva do que com a aniquilação desses vastos milhares de patagónios.
E esta estreiteza da emoção deriva de leis tão fatais que não se dá somente nas almas de caridade estreita – mas ainda nas mais ternas e nas mais largas, naquelas que parecem abrigar na sua amplidão do padecer humano... O bom senhor S. Vicente de Paulo, a quem o encontro de uma criancinha tremendo de frio ao canto de uma rua arrancava prantos desolados, que corriam enquanto ele corria com a criancinha sofregamente apertada nos seus braços, só teria um pálido e resignado suspiro quando ouvisse que, também na Tartária, em outras vielas regeladas, outras criancinhas tiri-tavam e choravam – se é que a homem tão ocupado com as misérias de França restava tempo para suspirar com as misérias da Tartária. E até talvez o muito divino S. Francisco, o adorável pobrezinho de Assis, irmão de todos os seres e para quem os próprios passarinhos das veigas de Itália eram irmãos muito queridos, não sentisse a sua costumada ternura, tão alvoroçada e activa, pelos pobres da Noruega, e não se reconhecesse inteiramente irmão dos pardaizinhos da Finlândia!
A superior sapiência das nações já formulou esta lei naquele seu fino adágio: «O coração não sente o que os olhos não vêem.» Para chorar é necessário ver. A mais pequenina dor que diante de nós se produza e diante de nós gema, põe na nossa alma uma comiseração e na nossa carne um arrepio, que lhe não dariam as mais pavorosas catástrofes passadas longe, noutro tempo ou sob outros céus. Um homem caído a um poço na minha rua mais ansiadamente me sobressalta que cem mineiros sepultados numa mina da Sibéria – e um carro esmagando a pata de um cão, em frente à nossa janela, é um caso infinitamente mais aflitivo do que a heróica e adorável Joana d’Arc queimada na praça de Ruão!
A distância e o tempo fazem das mais grossas tragédias ligeiras notícias – onde nenhum espírito são, bem equilibrado, encontra motivo de angústia ou pranto. Hoje certamente ninguém, a não ser algum velho e alto dignitário da Igreja ou do Estado, assistiria, com os olhos secos e o coração quieto, ao suplício de Joana d’Arc – mas nenhum fisiologista garantiria a sanidade intelectual de um sujeito que, na solidão da sua alcova, com as janelas cerradas, se desfizesse em lágrimas por os Ingleses terem outrora supliciado Joana d’Arc.
No entanto, vós observais, amigos, que já repetidamente chorastes (porque sois bons) com dores humanas, não somente sucedidas longe do vosso bairro, mas fora do vosso século; e algum mesmo me mostrará, como emblema irrecusável da confraternidade humana, o lenço sentidamente humedecido na véspera ao escutar os adeuses de Luís XVI aos filhos na prisão do Templo, ou mesmo a antiga Inês de Castro balbuciando as suas súplicas aos pés do antigo Afonso IV!
Decerto! E mesmo já muitas vezes tereis sufocado generosos soluços com misérias e tormentos de criaturas que só viveram no mundo aéreo da imaginação e do sonho. Mas quando, onde foi que assim vos comovestes, tão humanamente? Quando? Onde? No teatro, ou nas páginas de um romance, ou mesmo através dos sinceros versos de um poema, quando a arte, encarnando os seres dolorosos que concebeu ou ressuscitando com flagrante e magnífica realidade as figuras mortas da história, torna durante um momento essas criaturas, não somente vossas contemporâneas, mas vossas vizinhas, moradoras no bairro em que morais, respiradoras do ar que respirais, e pertencentes portanto àquela porção de humanidade próxima e tangível, cujas dores se partilham, porque confinam com as nossas... E depois, tal sujeito – que choramingou, no fundo do seu camarote, assistindo à morte da Dama das Camélias, morta pela milésima vez, na sua alcova de lona e papelão – recolherá a casa e lerá no jornal, com absoluta indiferença, mastigando a torrada, que duzentas mulheres, com os filhinhos nos braços, morreram afogadas num naufrágio, longe, nos mares da Indochina! Sim, amigos, essas duzentas mães afogadas nas vagas indochinesas certamente vos serão estranhas, e como não existentes! Se elas tivessem naufragado nos mares dos Açores, já sem dúvida tão patética nova vos arrancaria algum vago murmúrio de simpatia. Mas se elas houvessem perecido, elas e os pobres filhinhos, na baía do Rio de Janeiro, que incomparável catástrofe – e como vós correríeis pelas ruas, pálidos cheios de espanto!
Que digo eu? Para vos comover nem seriam necessárias duzentas desgraçadas – bastaria que naufragassem duas, se vós as conhecêsseis de nome e de rosto! Porque, segundo a cruel lei física que regula os fenómenos da emoção – um empregado da Alfândega que caiu de um barco e desapareceu na baía do Rio de Janeiro vale, para o habitante do Rio, mil pescadores despedaçados sobre os rochedos nas costas da Islândia!
Ah, esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração!
Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. Em torno da mesa outras senhoras costuravam.
Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com um sussurro das fontes, o aroma das roseiras. No jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. Era uma dessas semanas também em que pela violência da Natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a Terra.
Ela lia as catástrofes lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. «Na ilha de Java um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas...» As agulhas atentas picavam os estofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa – e ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, na Hungria, «um rio trasbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados...». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que desgraça!» A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada de ouro pela luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas... Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males. E ela mesma então teve um «oh!» de dolorida surpresa. No Sul da França, «junto à fronteira, um trem descarrilando causara três mortes, onze ferimentos...» Uma curta emoção, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses... Todos lamentaríamos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.
A leitora, tão cheia de graça, virou a página do jornal doloroso, e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno.... E, de repente, solta um grito, leva as mãos à cabeça:
– Santo Deus!...
Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:
– Foi a Luísa Carneiro, da Bela Vista... Esta manhã! Desmanchou um pé!
Então a sala inteira se alvorotou num tumulto de surpresa e desgosto.
As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltrona; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela Vista, buscar notícias por que ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.
Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações... Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro, dando à rua sombra e perfume.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

emoção foi ter lido este texto enorme.
há muito tempo que não lia Eça.imperdoável! obrigado.

terça-feira, maio 15, 2007 12:32:00 da manhã  

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